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Kalla


Kalla

Kalla acordou de um sono conturbado. Permaneceu na cama por alguns minutos, sentindo-se ainda dividida entre o mundo dos sonhos e o mundo real.

Desde pequena, sempre que ficava nesse estado, era invadida por um medo paralisante, sobretudo quando acabava de ter pesadelos. Então, permanecia na cama, pois temia que se levantasse, parte do sonho emergiria com ela, e penetraria no mudo real. Askana, uma velha xamã da floresta, sempre lhe dizia que isso não acontecia. E dizia outras coisas muito instigantes, que fascinavam Kalla. Mas quando chegava em casa, sobretudo quando se encontrava sozinha em seu quarto, seu fascínio se transformava num medo crescente, que culminava no mais puro pavor.

Mas o medo de Kalla não era devido apenas às histórias de Askana sobre outros mundos, e seres de outros mundos. Ela levantou da cama, fez as suas necessidades e higiene matinal, com o medo e a apreensão acompanhando-lhe em cada movimento. As criaturas do sonho já haviam se desvanecido. E as que persistiam na memória, estavam destituídas da aura de terror, mesmo aquelas criaturas altas de feições monstruosas que sempre a perseguiam nos piores pesadelos. Mas o seu medo agora, era de coisas reais.

“Real e irreal não existem. Tudo é uma coisa só, uma grande teia sem centro. Todo e todos interligados...”

A voz de Askana..., pegou a sopa que a sua mãe deixara sobre a lareira, e enquanto tomava, pensou que quando a tormenta passasse, iria morar na floresta com Askana, e aceitaria ser sua discípula.

Sua mãe estava na plantação. Preferia fingir que nada estava acontecendo, que as crianças não estavam sendo seqüestradas, o gado saqueado. Preferia ignorar, inclusive, a mensagem explícita que fora colocada num dos portões da aldeia. Um dos guardiões, crivado de flechas. Uma delas mantinha fixado no peito do homem tombado, um pergaminho, com uma mensagem ameaçadora.

“Já basta de avisos. O povo de Xul irá se fixar aqui. Fujam ou morram. Longa vida ao General Gonpo, nosso rei, emissário dos deuses, para fazer justiça na terra!”

Gonpo. Este homem devia mesmo ser muito importante para este povo de Xul. Caso contrário, as bajulações não seriam mais extensas que o aviso em si.

Alguns fugiram. E Kalla não os julgava por isso. Eram livres, e embora tivessem um líder, não eram escravos. O líder, o chefe Barthos, enviou destacamentos de homens e mulheres para vasculharem cada canto de Sigeldorn, suas florestas e cavernas, mas sem sinal do tal “povo de Xul”. O último desses contingentes retornou com um homem a menos. Este homem foi encontrado no Portão de Zogh, morto, crivado de flechas, aos pés do grande deus sapo Zogh. Este homem, Mess Málin, era muito amado por Kalla. E também por este motivo, ela não fugiu, nem fugiria. Por este e outros motivos, ela estava ali, no seu salão de treino, vestida com armadura completa, esmerilando sua espada, Tempestade Súbita, ou Mazuka.

Kalla embainhou Mazuka, pegou as suas provisões, e saiu do salão de treino. Não sem antes acender uma vela no altar de Rahl, o deus da guerra, do combate, da coragem. A partir daí tudo aconteceu muito rápido. Kalla virou-se, e viu três homens e uma mulher de pé, na sala, com sorrisos cruéis e espadas brandidas. Por mais que tentasse fugir da verdade, ela não conseguia. E a verdade era que aqueles eram os seres que a perseguiam nos sonhos. Então finalmente fizeram a tão temida travessia. Suas espadas eram belíssimas, e pareciam ansiar por sangue. Seus rostos eram diferentes de tudo que havia visto no mundo real, rostos animalescos. Seus corpos eram muito altos e fortes, azulados, com listras negras espalhadas por toda sua extensão. Suas armaduras pareciam ser de couro.

- Quem são vocês? O que querem? Como entraram sem ser percebidos?

A mulher riu alto.

- São muitas perguntas, minha cara. Muitas perguntas sobretudo para alguém que está morto!

Após esta última ameaça, Mazuka fez jus ao seu nome. Kalla dançou uma dança mortal entre os invasores, e as espadas cantaram sua canção metálica. A última a tombar foi a mulher, sem um braço, e com um buraco na garganta, de onde jorrou um sangue muito espesso e fumegante. Suas últimas palavras foram, “Glória ao Deus-Rei Gonpo. Justiça será feita ao povo Orc de Xul. Teremos o nosso lugar...”

Orcs! Mais uma vez Kalla se lembrou das histórias de Askana. Nessas histórias havia um povo chamado Ork, que fora banido havia muito tempo para um outro mundo. Um mundo próximo ao que chamamos de “real”, tão próximo que quando dormíamos, ficávamos próximos às suas fronteiras.

Kalla ficou ali, lavada de sangue, num transe, contemplando aqueles corpos que em nada pareciam feitos de sonho. Seu estupor só foi interrompido com o som de espadas entrechocando-se e gritos do lado de fora. A canção das espadas estava longe de terminar. Ainda haviam muitos passos da Dança Mortal a dar. Mazuka pareceu vibrar na sua mão, e a imagem de Rahl pareceu brilhar com uma luz própria, um brilho selvagem.

Sua mão entrou em casa, com a foice da lavoura na mão. O olhar de Zilla faiscava, parecia outra pessoa! Kalla não sabia que a sua mãe também sabia lutar. Mas não havia tempo para explicações. Elas se beijaram, se abraçaram, entrechocaram suas lâminas, e saíram. Saíram para a guerra, e quem sabe para a morte. A morte pela Aldeia Livre de Sigeldorn.

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